Direito, Greve de Porta Aberta

Ditadura (verde) do coronavírus

Poucas semanas depois de o surto epidémico do Coronavirus ter deflagrado na China, surgiam notícias sobre a redução assinalável dos índices de poluição atmosférica nas cidades orientais [1]. Algumas semanas mais tarde, quando a epidemia, já pandemia, chegou à Europa, por terras italianas era notícia a limpidez dos canais de Veneza, aliviados da pressão turística normalmente exercida sobre a cidade. Em Lisboa, os níveis de poluição atmosférica cairam 80%, e no Porto 60% [2]. A epidemia, ao provocar o confinamento, a redução da circulação automóvel, a paralisação da indústria, o fecho do comércio, e a paragem da aviação comercial, parecia constituir, paradoxalmente, uma lufada de ar fresco para o planeta. Com efeito, a redução de emissões de dióxido de carbono para a atmosfera ronda os 4%, ainda menos 2% do que o Acordo de Paris exige, mas muito mais do que provavelmente se atingiria sem pandemia.

Súbita e dramaticamente, a emergência climática que os parlamentos, um pouco por todo o mundo, denunciaram platonicamente em 2019, impôs-se sob a forma de emergência sanitária, com feroz restrição de liberdades. O receio de falência dos sistemas de prestações de cuidados de saúde levou a maior parte dos Governos a confinar quase toda a gente em casa, forçando uma radical alteração de hábitos quotidianos e a suspensão significativa da actividade económica. O que parecia impossível pela vontade esclarecida acontecia pela vontade tolhida pelo medo: parar o mundo. Frear o consumo, reduzir a produção industrial, deixar de voar, comer produtos locais, foram comportamentos (ou não-comportamentos) ditados pela inevitabilidade. A economia perdia, o ambiente ganhava.

Os insurrectos ambientais, isolados ou inseridos em movimentos como Friday’s for future, Extinction rebellion e tantos outros menos conhecidos, rejubilaram com a “libertação” do planeta do jugo capitalista. O Coronavírus conseguia, embora com um pesadíssimo lastro mortífero, impor uma verdadeira “ditadura verde”. A suspensão da legalidade a que se assistiu, com o decretamento de estados de excepção um pouco por todo o mundo, foi uma estratégia de combate à disseminação da pandemia que envolveu uma metodologia ainda democrática mas com grave afectação temporária, é certo — do Estado de Direito, assente na liberdade. A pandemia, com a sua virulência, forçou a adopção de acções e omissões ambientalmente amigos, de modo informal mas inflexível, contrariando hábitos enraizados com uma eficácia ímpar.

Passará, então, o Ambiente melhor sem o Direito — e sem as pessoas? Sem as pessoas, seguramente; mas como esse cenário é impossível — e indesejável —, havendo seres humanos habituados a viver com um determinado grau de bem-estar, é preciso conciliar esse desejo com a noção de que vivemos num planeta de recursos cada vez mais finitos e degradados na sua qualidade. E para isso, o Direito do Ambiente, desde a década de 1970, tem-se afirmado crescentemente, embora não com a eficácia necessária. O Direito do Ambiente tenta domesticar a exploração de recursos e contê-la dentro de padrões de gestão racional, mas a alteração de comportamentos que uma actuação ambientalmente correcta exige é árdua — e só uma causa externa, irresistível, como um vírus letal, parece capaz de a impor. Comprar menos, não comer tanta carne, andar mais a pé, separar o lixo, reutilizar em vez de descartar, poupar água, limitar as viagens de avião, são comportamentos que custa assimilar, sobretudo por quem projecta a existência em função do seu ciclo de vida, esquecendo que da Terra somos meros curadores, não proprietários.

Este Direito do Ambiente de que falo é feito por parlamentos e governos de cuja eleição os mais jovens, os que se confrontam cada vez mais dramaticamente com a emergência climática, estão excluídos. E os partidos representados nos parlamentos e aos quais se filiam os governos, são estruturas que traçam objectivos de curto prazo, que multiplicam promessas de abundância e conforto, às quais a luta contra a emergência climática é pouco simpática. As forças que os apoiam preferem muitas vezes ouvir as sereias do progresso económico em vez dos velhos do Restelo da Ciência, com as suas projecções apocalípticas.

Neste cenário, em que o altruísmo é pouco compatível com a natureza humana, a democracia de partidos é deficitária na incorporação de interesses metageracionais, a Economia descrê da Ciência, o Direito do Ambiente constitui a espada (o control) e o escudo (o command), ainda que frágeis, de defesa do futuro. A pandemia, se trouxe um alívio benéfico, embora fugaz, a alguns componentes do ecossistema — mormente, a qualidade do ar —, também revelou que um mundo sem regras e controlos é muito perigoso para o ambiente: pense-se na supremacia do plástico numa vida de refeições em take away, na preferência pela incineração de resíduos hospitalares e urbanos, nas descargas ilegais para efluentes, na indiferença perante o descarte de máscaras e luvas sanitárias. O pegada não ecológica da pandemia é, de facto, preocupante: junte-se o desnorte psicológico que o isolamento induz à tendência para a prevaricação quando a Administração fiscalizadora desvia o seu foco para riscos mais prementes, e o quadro regressivo comportamental instala-se. Por mais sedutora que seja a ideia de um retorno ao estado de Natureza, o Direito do Ambiente continua a ser um instrumento necessário para evitar— ou adiar — o pior.

Aquecimento global e pandemia da COVID19 têm — descartadas as teorias da conspiração — uma origem comum: os seres humanos [3]. Num estudo publicado online a 27 de Abril de 2020, os cientistas Josef SETTELE, Sandra DÍAZ, Eduardo BRONDIZIO e Peter DASZAK começam por afirmar isso mesmo, caracterizando a conjugação entre a desflorestação galopante, a descontrolada expansão da agricultura, a pecuária intensiva, o extrativismo vertiginoso e a exploração de espécies selvagens como a “tempestade perfeita” para gerar a explosão de doenças infecciosas. Mas a parecença fica por aí. Haverá vacina contra o vírus, mas não há vacina para o aquecimento global.

É que esta pandemia, por mais cruelmente mortífera que seja, em nada se compara aos cenários projectados pelos cientistas, para 2050 ou 2100, quando a temperatura subir 3º, 4º ou 5ºC em relação aos níveis pré-industriais. Sendo certo que esta suspensão temporária dos hábitos de consumo e bem-estar a que fomos sujeitos já nos parece uma pesada tortura, o que não diríamos perante a escassez de água potável, a tórrida canícula, o desaparecimento de território litoral, a penúria de alimentos — enfim, ante a Terra inabitável que nos descreve David Wallace-Wells [4]. Quanto mais tempo perdermos em inacção climática, mais difícil será promover uma transição do modelo actual para um modelo hipocarbónico e hipoconsumista sem abandono de métodos democráticos e recurso a práticas ditatoriais.

Se há lições aprendidas desta inédita crise sanitária, diria que elas são, indiscutivelmente, três: por um lado, o reforço do valor da Ciência, como competência indispensável para forjar uma vacina contra o vírus que nos permita retornar à normalidade possível, e a credibilização dos cientistas como oráculos do futuro do planeta; por outro lado, a necessidade de respeitar a biodiversidade, preservando habitats e não interferindo com a vida selvagem a ponto de gerar pandemias devido a cruzamentos entre morcegos e pangolins; e, por último, o imperativo de levar a sério e em alta o cumprimento do Acordo de Paris e criar as condições para a reconversão energética que permitirá reduzir as emissões de CO2 para a atmosfera e assim conter o aquecimento global. Nada acontece por acaso e a COVID19 pode muito bem ser o último alerta antes do mergulho numa irreversível catástrofe climática.

Carla Amado Gomes

Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Investigadora do Centro de Investigação de Direito Público
Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto)

[1] De acordo com medições efectuadas pelo satélite Sentinel 5-P, da Agência Espacial Europeia, a redução dos níveis de dióxido de nitrogénio das cidades e parques industriais orientais e europeus entre Janeiro e Fevereiro de 2020 em relação ao mesmo período de 2019 foi de cerca de 40% — https://theconversation.com/coronavirus- lockdowns-effect-on-air-pollution-provides-rare-glimpse-of-low-carbon-future-134685
Cfr.

[2] https://www.publico.pt/2020/04/01/local/noticia/covid19-niveis-poluicao- cairam-pique-lisboa-reducao-chegou-80-1910468 https://www.publico.pt/2020/04/01/local/noticia/covid19-niveis-poluicao-cairam- pique-lisboa-reducao-chegou-80-1910468

[3] Josef SETTELE, Sandra DÍAZ, Eduardo BRONDIZIO e Peter DASZAK, COVID-19 Stimulus Measures Must Save Lives, Protect Livelihoods, and Safeguard Nature to Reduce the Risk of Future Pandemics, artigo publicado a 27 de Abril de 2020 — https://ipbes.net/covid19stimulus, 27/04/2020

[4] David WALLACE-WELLS, The unhabitable Earth — Life after warming, 2019.

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