Economia, Greve de Porta Aberta

Vende-se o planeta. E depois?

Talvez esperem que não se note o truque: “saber-se-á a verdade, mas quando já não for verdade (…), quando tal informação já for inócua e nenhuma revolta suscitar.” . Na era da desinformação, pode ser que funcione. Mas se queremos saber onde está o poder, basta esquecer os discursos e seguir o dinheiro.

Há 40 anos, empresas petrolíferas como a Exxon e a Shell esforçaram-se para ocultar os relatórios internos que apontavam para os enormes riscos associados à extração de petróleo. Hoje, poucos se atrevem a pôr em causa a emergência climática, deixando-o para os conservadores mais retrógrados. Pelo contrário, os negócios readaptaram-se e aprenderam a lucrar, mesmo quando o perigo já se tornou evidente. Tudo é possível, menos encarar a crise.

Os negócios e o clima

Os maiores bancos de investimento mundiais canalizaram 2,66 biliões de dólares para a indústria dos combustíveis fósseis desde que o Acordo de Paris foi redigido. O banco que mais contribuiu para o investimento nos combustíveis fósseis foi o JP Morgan Chase – foram mais de 220 mil milhões nestes últimos 4 anos, diretamente para a extração de petróleo, gás e carvão. É o mesmo banco de onde foi divulgado um relatório interno em que os seus economistas admitem que as alterações climáticas são uma ameaça ao futuro da humanidade, afirmando: “embora não seja possível fazer previsões precisas, tornou-se claro que a Terra está numa trajetória insustentável”. A conclusão não terá chegado aos que o dirigem.

JP Morgan Chase leads the list of banks providing the most funds for fossil fuel industries since the Paris agreement

Os bancos norte-americanos investem no fracking (método que possibilita a extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo) no Texas; na China, aposta-se no carvão. Todos dizem estar preocupados com as alterações climáticas e todos prometem trabalhar em soluções. Mas, para lá das boas intenções, o financiamento continua a ser canalizado para estas indústrias poluentes. Talvez esperem que não se note o truque: “saber-se-á a verdade, mas quando já não for verdade (…), quando tal informação já for inócua e nenhuma revolta suscitar.” . Na era da desinformação, pode ser que funcione. Mas se queremos saber onde está o poder, basta esquecer os discursos e seguir o dinheiro.

O clima é um excelente negócio

Como ainda há quem diga que os mercados podem resolver o problema, é preciso olhar para a experiência dos últimos anos: o mercado de emissões de carbono foi inicialmente proposto aquando do Protocolo de Quioto em 1997. Na União Europeia, já existe este mecanismo e os países podem comprar e vender direitos de emissão entre si. A ideia era que os limites de quantidade estabelecidos e os mecanismos de mercado – os custos das emissões – fossem suficientes para limitar a poluição. Aconteceu o contrário: o mercado emite demasiadas licenças, o seu preço chegou a descer (encorajando a poluição) e continua hoje a ser manifestamente baixo. Por outras palavras, as emissões poluentes são rentáveis.

A União Europeia prometeu mudanças quando anunciou o novo Green Deal. O plano era investir 1 bilião de euros ao longo da próxima década para financiar a descarbonização da economia a apoiar os setores dos transportes, construção, energia, entre outros. No papel, nada seria como dantes. Na prática, o resultado é outro: a proposta baseia-se na mobilização de fundos pré-existentes (que são cortados noutras áreas) e capital privado (que não está garantido, lembram-se de como estão a atuar os bancos?). Além disso, prevê um corte das emissões de CO2 em 55% até 2030 ( relativamente ao valor de 1990) e atira o objetivo da neutralidade carbónica para 2050. É demasiado pouco, demasiado tarde.

Para juntar ao problema, a proposta que a Comissão apresentou para o orçamento comunitário inclui cortes nos fundos de coesão, fundos que beneficiam particularmente os países que serão mais afetados pela reconversão energética por terem economias mais assentes no carbono (os da Europa de Leste). Há mais preocupação em garantir que os investidores lucram com a transição, promovendo a nova “finança verde” e a velha indústria do armamento, do que em ajudar os que perdem o emprego neste processo. Mas não chega a ser surpreendente: afinal, não foi um comissário europeu que descredibilizou recentemente os ativistas climáticos, dizendo que sofriam de um “síndrome de Greta”?

Os negócios não são verdes, mas a política pode ser

É o sistema de produção e organização social que está por trás desta crise. O filósofo Michael Löwy enuncia-o nas suas XIII teses sobre o clima: “A mudança climática começou com a Revolução Industrial do século XVIII, mas foi após 1945, com a globalização neoliberal, que se deu um salto qualitativo. Noutras palavras, é a civilização industrial capitalista moderna que é responsável pela acumulação de CO2 na atmosfera e, com isso, pelo aquecimento global.” Da crise que atravessamos, podemos tirar uma lição: confiar nos mercados para resolver a crise climática é demasiado perigoso e deixar aos poderosos a definição da estratégia é a garantia do fracasso.

A solução tem mesmo de ser a mais exigente. O planeta não vai esperar pelos governos que não atuarem já na transição energética, compensando a destruição de postos de trabalho nas indústrias extrativas com criação de emprego na reconfiguração da economia, apostando nos transportes públicos movidos a renováveis, na promoção da eficiência energética nas casas e locais de trabalho e nas mudanças nos sistemas de produção. Os custos da transição não têm de ser suportados pelos mais vulneráveis – eliminar os subsídios à indústria fóssil e ser exigente na tributação dos mais ricos gera mais fundos do que qualquer programa de austeridade verde. O BCE também pode recorrer à emissão monetária para financiar o investimento dos governos, em vez de o fazer apenas para o sistema financeiro. Ao “monetizar” a despesa, o banco central permite que os governos não criem dívida, retirando aos países uma parte do custo. Numa situação de crise como a que atravessamos, é uma medida de bom senso.

É claro que, para tudo isto, é preciso mudar de políticas. Se a experiência já nos mostrou que as soluções de mercado não respondem à crise, também nos recorda que é quando já parece demasiado tarde que as respostas coletivas podem triunfar, precisamente porque as crises são momentos de rutura. Hoje, como no passado, as escolhas que fizermos serão determinantes.

Vicente Ferreira, Mestrando em Economia no SOAS – University Of London

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